E então ele derrubou a porta. O som de sua queda era o único por todo o andar. Não era a primeira vez que fazia aquilo, mas todas as vezes como se fossem a primeira eram. O revólver estava em punho e a atenção era máxima no primeiro passo ao interior. A luz dos prédios vizinhos era a única que havia naquela sala, em uma noite em que a lua escondida apenas aumentava a sua intranqüilidade.
Blankh então entrava. Observava atentamente o amontoado de coisas indefiníveis sobre o piso. Esperava, apenas, que não fosse sangue o líquido que o fazia deslizar. O odor do gás bunato preenchia todo o ar sombrio da casa. Ele desejava que a busca naquele local ajudasse a resolver seu caso tanto quanto desejava ninguém ali encontrar.
Tomou de uma profunda respiração enquanto continuava a adentrar. Mantinha na mira de sua arma sua prioridade de atenção, era sua única defesa contra o inesperado. Talvez parecesse óbvio para um cidadão comum que o trabalho de um detetive lida naturalmente com o desconhecido, contudo, atuar em campo era algo sempre novo. Assim caminhava, como se em um momento indeterminado, determinado evento indeterminado ocorreria, e sua obrigação, e única opção, solucioná-lo rapidamente seria.
Atravessou o pequeno cômodo até a sua janela, concentrando-se em um possível movimento da única porta que parecia levar ao resto do apartamento. Era uma vantagem evidente de seu trabalho a possibilidade de obter a planta do local antes mesmo de nele estar. Lembrava-se naquele momento o quanto gostava do eficiente grupo de gestão de dados da central da polícia, mesmo que, em boa parte do tempo, pensasse de forma oposta. Então ergueu lentamente a peça que trancava a janela verticalmente, e ainda, utilizando apenas sua mão esquerda, empurrou suas duas peças vitradas para o exterior do imóvel. Uma gélida brisa de fim de madrugada passou a limpar o ambiente que, até então, apenas o desagradava.
Em uma conclusão primária, Blankh avaliava a origem da desordem criada por todo aquele lugar. A possibilidade de uma invasão e busca antes de sua chegada era a mais clara, porém não era o que exatamente parecia ter acontecido. Pensava que aquilo poderia ter sido forjado, e que assim nada encontraria lá. Ele queria apenas uma pista.
Ouviu algo, como um passo abafado por uma superfície macia, pensava ele ser um tapete ou carpete do outro ambiente do apartamento. Em um momento de tensão como aquele, era difícil diferenciar o que era real e o que era fruto da sua própria imaginação. Entretanto, não poderia contar com a possibilidade de ter se enganado, e redobrava então a sua atenção para com uma movimentação partida do outro lado daquela porta.
Atravessava a sala outra vez, em direção ao local do qual havia chegado. Agora a claridade era mais intensa e conseguia se ater a detalhes antes imperceptíveis. O líquido que antes sentira era uma espécie de óleo escuro, que não sabia determinar a origem. Gavetas e pastas estavam abertas e espalhadas por todo o cômodo. Seus conteúdos pareciam ter sido movimentados com demasiada pressa pelo último ali presente. Talvez ele tivesse encontrado o que queria antes de Blankh, o que ele esperava que não fosse verdade.
Aquele não parecia ser o caso mais difícil que enfrentara em sua carreira, mas ele sabia que era diferente. Havia uma pitada de surpresa em cada acontecimento envolvendo o roubo. Em especial, desconhecer as circunstâncias nas quais aquilo teria ocorrido, ou até mesmo como. Ao mesmo tempo, sabia que a Found não teria dado todas as informações sobre o que realmente pegaram deles. Mantinha sua sensação de que teria que descobrir mais do que necessário.
Parou na frente da porta, da mesma forma que fizera quando no corredor. Cercou a maçaneta com a palma de sua mão e encostou o ombro do braço que segurava a arma se preparando para uma investida sobre esta barreira. Mentalmente contou até três e, em um único e veloz golpe, girou e pressionou. Era um momento decisivo de uma atividade desta espécie, pois poucos instantes tinha para localizar um alvo e colocá-lo em mira.
Já havia pisado no carpete que anteriormente imaginara. Fechou a área e encontrou seu alvo. Não houve mais tempo para pensar, apenas para reagir. Talvez para nem isso houvesse. Eis que o silêncio se rompeu, definitivamente.
Os eventos a seguir ocorreram em algumas frações de segundos. Nem o próprio agente saberia descrever a forma na qual reagiu, quando perguntado sobre, horas depois. Sabia apenas que um impulso, quase que instintivo, o dominara e coordenara suas ações.
Quando Blankh entrou neste outro cômodo, avistou um vulto em veloz movimento, lançando-se através da noite na janela. Resultou em sua defesa única em reflexo, o tiro. Ele ainda contaria, durante um longo tempo nas muitas ocasiões em que estaria rodeados de seus colegas de corporação. Pelo mais que odiasse passar o tempo sendo obrigado a falar com pessoas, gostava de narrar suas aventuras, já que poucos pareciam vivê-las em época tão burocrática. Essa havia sido sua motivação ao se candidatar ao cargo, e não os altos salários por carimbar em três cores diferentes. Agir.
Seu disparo foi certeiro, só não sabia em que alvo. Não tardou a descobrir. Fora enganado pelas sombras a atingir o que parecia ser o intruso, mas apenas era um cilindro metálico diante das poucas estrelas. Lembrou-se do odor de gás que sentiu ao entrar e o fez abrir a janela. Era tarde. O balão metálico já estava rompido, de forma abrupta, tão quanto a velocidade do seu conteúdo passar a estar contido em todo o apartamento. O reflexo, agora então de esconder as vias de seus sistema respiratório, foi desnecessário pois logo outro se fez indispensável para Blankh. Esticou a mão para o interruptor e acendeu a luz.
Junte um gás e um líquido altamente inflamáveis. Nada acontece. Forneça então uma energia inicial de ignição, suficiente para iniciar o processo de queima de um dos materiais. Terá chamas, por toda a parte. O escuro e frio daquele desolado domicílio se tornou a transcrição de um inferno cristão, com o instantâneo de que uma lâmpada ilumina uma sala quando acesa, como deveria acontecer, se aquela tivesse seu vidro formal intacto. Havia dado a faísca.
Os eventos a seguir ocorreram em algumas frações de segundos, e seriam a sutil diferença entre a vida e a morte.
Transcorreu o espaço até o corredor como uma salamandra o faria. Não restaria nenhum registro de imagem destes instantes em sua mente, contudo, sua próxima aspiração era a confirmação de que havia ocorrido. Transpirava e sentia o ardor das chamas que a pouco, por pouco, não o consumiram. Apoiava-se na parede que dera às costas ao adentrar no eminente incêndio. Em sua mente sustentava um único pensamento: perdia no calor incontrolável sua única chance de resolver o caso.
O tempo para pensar em algo mais amplo do que isso Blankh só teria ao ver o dia nascer. Até lá, não pode parar por mais do que alguns segundos para recompor o fôlego. Naquele momento, percebeu temperatura não diminuiu e virou-se de volta para o apartamento. Da mesma forma com que modela as ondas de um mar em calmaria, a janela aberta permitiu que o vento o mesmo fizesse. Uma enorme labareda tomou o corredor, e fez Blankh sentir que a armadilha havia sido mais planejada do que imaginava.
Dessa vez não foi necessário agir tão rapidamente. Se dirigiu a escada de incêndio, alguns metros ao norte, a longos passos enquanto imaginava que o fogo consumia o corredor. Pisou profundamente no primeiro degrau da assustadora escada de madeira do antigo prédio e, ao mesmo tempo, como em uma sonoplastia sincronizada perfeitamente, escutou, e sentiu, uma enorme explosão vinda do corredor, no qual segundos atrás trotava. A experiência mais próxima a esta que possuía tinha sido um foguetório mal sucedido em uma final de campeonato de futebol. Foi lançado para o intermediário dos jogos duplos de escada de cada andar.
Ergueu-se e saltou dois destes jogos, enquanto ouvia os degraus superiores sendo destruídos, caindo sobre a escada e alastrando o incêndio mais rapidamente por todo o prédio. O ambiente já era totalmente ocupado pelas cinzas. Blankh não sabia mais se corria para evitar queimaduras de alto grau ou para poder, enfim, tomar um pouco de ar puro. Desceu mais dois andares aos tropeços, utilizando do corrimão para conseguir parar antes de atingir a próxima parede.
Finalmente avistou a porta de saída. Estaria a poucos metros do alívio que desejava. Se lançou sobre ela da forma mais agressiva e impensada. Ao fim de tal movimento desesperado, para sua sorte, estava ajoelhado no asfalto, com somente algumas queimaduras indiretas e arranhões da fuga desembestada. Pensava que, então, terminaria sua busca noturna fracassada. Para seu azar, estava com um revólver apontado no meio de seus olhos.
Tinha em mente o vulto em que tentou o disparo instantes atrás. Não tinha em mente uma maneira de se proteger. Acreditava que havia chegado o fim de sua jornada, após uma missão falha. Concretizava o término decadente de sua, não tão longa, carreira de agente investigativo.
Blankh guardou aquela como sua última imagem: o homem vestindo um elegante terno preto e óculos escuros com sua arma a centímetros de distância. Fechou os olhos, pensando entregar a Deus o seu destino. Fora, mais uma vez, surpreendido. Uma grave e precisa voz o disse: "Agradeça por eu te tirar desta missão inútil."; Já imaginava como seria simplesmente deixar de existir, se teria dor ou até, talvez, alguma espécie de continuidade.
O inesperado era a rotina daquela noite, definitivamente. Se o próprio Blankh não houvesse presenciado todos os eventos, duvidaria da veracidade destes acontecimentos. Imaginava que deveria ser mais fácil todos os 'black jacks' de sua vida acontecerem de novo do que aquilo tudo ter acontecido, mas, claro, não tinha a menor o idéia do absurdo matemático que supunha.
Blankh sentiu um gigantesco tremor, como se um verdadeiro vulcão alcançasse o estágio de erupção alguns metros atrás. Foi ensurdecido, momentaneamente, pelo impacto do som resultante. Metros acima, as chamas haviam alcançado o cilindro de gás e o romperam-no. Era o término de todo o combustível em uma única reação. As labaredas que haviam invadido o corredor se espalharam através de todas as janelas do quarto andar para dentro da noite. O homem hesitou, e Blankh estava pronto.
Disparou sua arma, que em toda essa movimentação não saiu de seu punho. Abriu os olhos e viu o homem caído. Perguntou a ele quem era e o que estavam planejando em uma atitude que já julgava inútil considerando o estado agonizante de seu inimigo, que muito se esforçava para respirar. Sempre fora a sua especialidade o confronto à queima roupa, e cada vez mais confirmava. Desferira o golpe no sistema respiratório do homem, que prejudicado por suas próprias cinzas, não conseguia mais reagir.
Escutou uma última explosão, que, tecnicamente, foi uma implosão. O quarto andar cedeu para os dois que acima se encontravam, e o antigo e precário prédio começava a se desmanchar, como um castelo de areia em fim de dia de praia. Em seu folego final, tomou o máximo de distância que pode do desabamento. Tudo havia perdido. Pistas, suspeitos e, principalmente, oportunidades. Sua missão teria que recomeçar do ponto zero.